sexta-feira, 4 de junho de 2010

Quando Deus Advém



When God Descends



Sua Graça Ravindra Svarupa dasa

Por todo o mundo, encontramos o tipo de literatura que chamamos de escritura. Essas obras contam-nos um tipo particular de história. Elas contam aquelas ocasiões extraordinárias em que o divino penetrou o nosso mundo, e os nossos pequenos espaço e tempo abrigaram, por um tempo, o eterno e infinito. As testemunhas dessas incursões, completamente mudadas pelo que viram, vêem-se compelidas a derramar sobre os ouvidos indiferentes e descrentes do mundo suas narrativas singulares e poderosas. E simplesmente porque essas testemunhas foram tão mudadas, outros ouviram e também mudaram.



A partir desses relatos escriturais, vemos que o divino advém de várias maneiras. No Pentateuco, por exemplo, Deus entremete-Se em nosso mundo basicamente por meio de atos maravilhosos de poder divino: Ele infesta os egípcios com sapos e moscas, piolhos e gafanhotos, transforma seu rio em sangue, e ceifa a vida de seus primogênitos. Ele liberta Seu povo abrindo o Mar Vermelho, e apresenta diante deles uma nuvem de fumaça durante o dia e um pilar de fogo durante a noite como faróis a guiarem-nos através do deserto.



Ocasionalmente, Deus coloca-Se especialmente perto, embora permaneça, mesmo então, como uma presença estupenda e incompreensível bem atrás do véu fenomênico. Sua proximidade faz com que a natureza ferva e exploda; parece que, a qualquer momento, Ele possivelmente estourará através da fina cortina da natureza e emergirá inteiramente sobre o palco – mas Ele nunca o faz. Quando Deus pela primeira vez colocou-Se perante Moisés, um arbusto queima furiosamente e não é consumido, enquanto que Moisés temerosamente evita fixar seu olhar sobre o mesmo. Quando o Senhor advém sobre o topo do Monte Sinai, a ladeira treme, e uma densa nuvem, matizada de fogo, perturba e troveja em torno do pico oculto. Moisés some para dentro da nuvem a fim de parlamentar demoradamente com Deus. Em seguida, ele relata ter tido apenas o mais fugidio relance das costas do Senhor indo embora, sem jamais ter visto Seu rosto.



Outro celebrado ingresso do divino em nosso mundo é ainda mais severamente restrito: Maomé, filho de Abdullah, meditando durante o calor do Ramadã no monte Hira, fora de Meca, ouve o comando de uma voz magnífica: "Lê!". "Não sei ler", vem sua aterrorizada resposta. Novamente: "Lê!". A mesma resposta mais uma vez. A voz, ainda mais terrível, comanda uma terceira vez: "Lê!". Maomé responde: "O que devo ler?". A voz diz:



Lê: Em nome do teu Senhor que criou. Criou o homem a partir de um coágulo. Lê: É teu Senhor o mais bondoso, aquele que ensinou pelo cálamo, ensinou o homem aquilo que ele não sabia.



Desta maneira, a primeira de muitas de tais "leituras" torna-se manifesta na Terra. Juntas, elas constituem o Qur'an (Corão), entregue a Maomé, o mensageiro de Deus, por Gabriel, o emissário de Deus, “que permanecia suspenso entre o céu e a terra, que abordou e chegou tão perto quanto a medida de dois arcos, ou até mesmo mais perto”. Seus encontros formam o conduto através do qual o incriado Qur'an, “preservado eternamente na tábua do céu”, advém à Terra. Neste caso, Deus não entra em nosso reino mundano em pessoa, mas vem na forma de Sua palavra transcendental que torna manifesta a Sua vontade.



Aqui, a palavra de Deus advém ao mundo. O Novo Testamento, entretanto, fala sobre um advento em que "a Palavra se fez carne". A natureza divina se corporifica na pessoa humana de Jesus Cristo, o Filho de Deus. Jesus declara: "Eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade dAquele que me enviou", e confessa: "De maneira autônoma, nada posso fazer". Deste modo, Jesus revela-se um servo eterno de Deus, dizendo: "meu Pai é maior do que eu". Porém, porque é rendido a Deus sem reservas, Deus torna-Se manifesto nele para nós: “As palavras que eu vos digo não as digo eu mesmo, mas o Pai, que está em mim, é quem faz as obras. Acreditai em mim que eu estou no Pai e que o Pai está em mim”. A pessoa de Jesus, por conseguinte, é, em si mesma, a revelação de Deus: “Aquele que viu a mim viu o Pai”, pois “eu e o Pai somos um”.



Porque diferentes escrituras reportam adventos divinos tão vastamente diferentes e conduzem-nos à rendição a Deus sob diferentes nomes - Jeová, Alá, Jesus e assim por diante - e porque os seguidores de uma escritura tendem a condenar os seguidores de todas as outras como infiéis ou pagãos ou hereges, muitas pessoas ficam perplexas ou desgostosas. A religião, desta forma, fica mal tida pelas pessoas em geral. As pessoas se perguntam: "Se há um Deus, por que Ele deveria Se manifestar de diferentes maneiras e fornecer diferentes instruções?".



Há uma resposta a essa pergunta em uma outra escritura, o Bhagavad-gita. Esta canção (gita) foi cantada por Deus (bhagavan) durante Seu advento à Terra cinco milênios atrás. O Senhor - conhecido como Krsna, "o todo-atrativo" - dirige-Se ao Seu amigo e discípulo Arjuna: "Da maneira com que todos Se rendem a Mim, Eu os recompenso de acordo. Todos seguem o Meu caminho sob todos os aspectos, ó filho de Prtha" (Bg. 4.11).



Considerado como uma resposta ao problema da diversidade religiosa, esta declaração judiciosamente nos conduz entre extremos. Ela evita, de um lado, aquelas formas de sectarismo que concedem a uma tradição religiosa em particular direitos autorais exclusivos sobre Deus: "Todos seguem o Meu caminho sob todos os aspectos". Por outro lado, rejeita o sentimentalismo que endossa, sem nenhum senso crítico, toda e qualquer forma de espiritualidade. Krsna, na verdade, oferece um princípio mediante o qual podemos discriminar entre eles: "Da maneira com que todos Se rendem a Mim, Eu os recompenso de acordo".



A palavra sânscrita traduzida aqui como "recompenso" - bhajami - é rica em significado. Ela é formada a partir de uma palavra que significa fundamentalmente "distribuir", "compartilhar com". Mais frequentemente, contudo, significa "servir com amor", ou, em um sentido mais vago, "adorar". Vemos, assim, que Krsna está estabelecendo um princípio de reciprocação. Deus reciproca conosco justamente distribuindo-Se - revelando-Se - a nós proporcionalmente ao nível em que nos rendemos a Ele.



A "recompensa" de Deus, portanto, pode ser qualquer uma de uma hierarquia de respostas ao longo do caminho progressivo do serviço divino. Na parte mais baixa desse caminho, por exemplo, uma pessoa pode servir fielmente Deus em prol do logramento de bênçãos materiais. Deus reciproca outorgando-lhe o desejo. Embora o adorador desfrute apenas de um benefício material e temporário (não espiritual e eterno), ele aceita sua recompensa como reciprocação divina - para ele, trata-se de uma revelação de Deus - e sua fé reforçada o mantém no caminho da devoção. No que diz respeito àqueles devotos avançados que não desejam nada material ou espiritual em troca de seu serviço oferecido de todo coração, Krsna os recompensa de forma diferente: Ele Se revela inteiramente, e, em uma troca doce e íntima, serve os devotos tal qual os devotos O servem.



Deus declara: “Todos seguem o Meu caminho”. Como há um Deus, há uma religião: o serviço devocional a Deus em completa rendição. Não devemos ser desorientados por designações sectárias. Embora “Islã”, por exemplo, seja uma palavra utilizada para denotar uma comunidade sectária ou sua fé, o termo al islã em si não é exclusivo ou particular, senão que significa simplesmente “a submissão”, ou “a rendição”. Essa religião única, verdadeira, essencial e universal também é seguramente indicada por Jesus. Quando solicitado a citar o mais grandioso mandamento da lei, ele respondeu, citando o Pentateuco: “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de toda a tua mente”.



O Senhor Krsna, de modo similar, aponta a religião essencial ao fim do Bhagavad-gita. Tendo examinado muitos processos espirituais – trabalho piedoso, rituais religiosos, meditação ióguica, adoração de semideuses, discriminação filosófica entre matéria e espírito – e tendo mostrado que eles nada são além de vários degraus no caminho até a completa devoção a Deus, Krsna convida-nos conclusivamente a irmos diretamente a esse ponto. “Abandona todas as variedades de religião”, Ele incita Arjuna, “e simplesmente rende-te a Mim” (Bg. 18.66).



Todavia, porque somos, em vários níveis, resistentes ao chamado divino de completa rendição, Deus permite o nosso avanço gradual, instruindo-nos e revelando-Se na extensão de nossa disposição de serviço ou – a mesma coisa – na extensão em que nossa pureza espiritual permite. Assim, o elemento da relatividade adentra a interação divino/humano de maneira a fazer surgir as variedades de religião. Em todo caso, entretanto, o fundador da religião é Deus e ninguém mais. Como o Srimad-Bhagavatam (uma escritura sobre a qual consideraremos adiante) nos diz, dharmam tu saksad bhagavat-pranitam (Bhag. 6.3.19): “O caminho da religião é estabelecido diretamente pelo próprio Senhor Supremo”.



Para esse propósito, Deus advém muitas vezes. Krsna anuncia o princípio geral governando Sua entrada neste mundo: “Quando e onde quer que haja um declínio na prática religiosa e um crescimento predominante de irreligião – nesse momento, Eu advenho. Para libertar os piedosos e aniquilar os descrentes, bem como para restabelecer os princípios da religião, Eu mesmo apareço, milênio após milênio” (Bg. 4.7-8).



Nenhum tempo e nenhum lugar tem monopólio sobre a auto-revelação de Deus. Deus vem quando Ele é necessário, sempre com a mesma missão: reparar e restaurar o caminho da religião devastado pelo tempo, coberto de matagal e corroído por negligência e abuso. Desta maneira, o Senhor não apenas estabelece a religião na Terra, senão que retorna repetidamente como o incessante mantenedor da mesma.



Dessarte, não precisamos nos alarmar diante do número e da variedade de aparecimentos de Deus relatados nas escrituras reveladas do mundo. Respondendo gratamente à bondade divina, devemos aspirar a uma perspectiva inclusiva e aberta, compreendendo cada advento particular de Deus de acordo com o princípio de que a revelação é reciprocada pela rendição.



Podemos buscar ajuda para essa diligência no Srimad-Bhagavatam. Tanto o Bhagavad-gita quanto o Srimad-Bhagavatam foram revelados à Terra no período do advento de Krsna cinco mil anos atrás, e, juntos, possuem uma posição distinta na vasta biblioteca indiana de sabedoria espiritual, a literatura Védica. O Srimad-Bhagavatam, “a escritura pós-graduada”, transmite a última palavra em conhecimento Védico, e o Bhagavad-gita transmite especificamente as instruções a qualificarem o indivíduo para abordar o Srimad-Bhagavatam.



A literatura Védica, em sua catolicidade, provê algo para o avanço de todos no caminho espiritual. O Srimad-Bhagavatam compara os Vedas a uma “árvore-dos-desejos” – a árvore celeste cujos ramos produzem toda variedade de frutas. Quando, com o tempo, os seguidores dos Vedas tornaram-se confusos por esta diversidade e perderam de vista o verdadeiro propósito do ensinamento Védico, o autor dos Vedas – o próprio Deus – adveio e entregou o Seu Gita. Ali, como mencionado, Ele revê todas as práticas Védicas e, com Sua autoridade, restabelece a conclusão Védica final: “Abandona todas as variedades de ‘religião’ e simplesmente rende-te a Mim”.



Tendo aceito esta instrução, estamos aptos para o Srimad-Bhagavatam, como o prelúdio de tal obra indica: “Rejeitando completamente todas as atividades religiosas motivadas por desejos materiais, este Srimad-Bhagavatam propõe a verdade mais elevada, que é compreensível por aqueles devotos que são completamente puros de coração” (1.1.2). O Srimad-Bhagavatam é, por conseguinte, “o fruto maduro da árvore-dos-desejos dos Vedas” (1.1.3).



Srimad significa “belo”, “esplêndido” ou “ilustre”, e Bhagavatam significa “vindo de Deus ou relacionado a Deus”. Este “Belo Livro de Deus” é uma compilação enciclopédica dos admiráveis feitos de Deus enquanto Se divertia na Terra em numerosas aventuras. Seus passatempos – atestando plenamente Sua inexaurível faculdade inventiva, Sua completa exuberância – desvelam perante nossos maravilhados olhos panoramas arrebatadores da divindade a brincar. Tendo saboreado essa fruta madura da árvore Védica da sabedoria, o indivíduo contrai a ânsia de atirar-se diante daquelas pessoas de alma estéril que, na aridez de seu entendimento pessoal, perderam todo gosto por Deus, e implora: “Lê este belo livro!”.



“Por favor, lê este belíssimo livro!”. Aqueles confortáveis com uma idéia mais constringida de Deus talvez se choquem ou se surpreendam ante o grande número e a grande variedade de aparecimentos de Deus. Em um dos capítulos do começo do Bhagavatam, o santo Suta Gosvami, falando perante uma audiência de sábios, lista vinte e duas encarnações (tanto do passado como do futuro) e faz uma observação: “Ó brahmanas, as encarnações do Senhor são inumeráveis, como regatos fluindo a partir de inesgotáveis fontes de água” (1.3.26). Um capítulo mais adiante (2.7), “Encarnações Anunciadas com Funções Específicas”, contém um compêndio ainda mais extenso. O Srimad-Bhagavatam é, em grande medida, devotado a detalhadas exposições dessas encarnações, uma após a outra, conduzindo e preparando o leitor para a narração última, aquela dos passatempos do próprio Krsna.



Assim, encontramos Deus em muitas formas. Ele advém, por exemplo, como Matsya, o leviatã que salvou os Vedas do dilúvio mesmo enquanto Se divertia nas vastas águas; advém como Varaha, o javali que ergueu do abismo a Terra caída e aniquilou em um único combate aquele que a violava; advém como o sábio Narada, o eterno viajante espacial que migra de planeta a planeta ao longo do universo pregando e cantando as glórias do Senhor; advém como Nrsimha, o prodigioso homem-leão que, em uma estupenda epifania de poder, socorreu Seu devoto, um menino de seis anos, matando – de maneira espetacular – seu torturador, um tirano ateísta interplanetário que era o próprio pai do garoto; advém como Vamana, o belo anão que atravessou todo o universo com três longos passos; advém como Parasurama, aquele que porta um machado e que puniu vinte e uma gerações de homens da realeza por desviarem-se dos princípios de conduta divina; advém como o Senhor Ramacandra, o exemplar regente divino, rei perfeito e a personificação da moralidade em ofício; e advém como muitas outras personalidades insignes e inesquecíveis que apareceram a fim de ensinar, proteger, liderar e inspirar a humanidade.



Tudo isto ser muitíssimo incrível conduz à incredulidade. Todavia, consideremos: Deus não é, por definição, o ser mais incrível de todos? Assim sendo, o nosso princípio deve ser: quanto mais incrível o relato, mais aberto devemos estar a ele. Por que exigir que Deus Se reduza de sorte a adequar-Se à nossa compreensão prosaica? Quanto mais incrível Ele for, mais divino Ele é.



Podemos detectar um elemento inconfundível de brincadeira em muitos adventos divinos, e isso talvez também cause dúvidas. Isso, porém, seria outro caso no qual insensatamente impomos restrições a Deus. Deus é brincalhão: o termo sânscrito para atividade divina é, na verdade, lila – brincar ou divertir-se. Mediante Seu poder inconcebível, Deus une perfeitamente em Seus adventos um propósito muito sério, salvar a humanidade, com grande diversão. Destarte, como Matsya, Ele retouça nas ondas do dilúvio; como Varaha, desfruta de uma boa luta. Em todos os adventos, nós O vemos deleitando-Se no aproveitamento das possibilidades de um papel em particular, um ator no palco.



A idéia de lila captura um elemento definidor da atividade divina: ela é imotivada. Todos os atos humanos originam-se de motivos, do desejo de termos o que nos falta ou do medo de um dia faltar-nos. Deus, entretanto, já tem tudo. Ele nada tem a ganhar ou a perder. O que existe, portanto, a impeli-lO à ação?



“Nada”, dizem muitos especuladores. E eles concluem que Deus é estático, inerte. Caso isto fosse verdade, Deus seria, na verdade, depauperado. Ao contrário, Deus é completo, e Ele age exatamente em Sua completude: Ele brinca. A nossa noção de brincar transmite parcialmente o espírito correto: fazer algo sem nenhum outro motivo além da própria diversão do fazer, pelo júbilo da ação por si mesmo. A lila divina, portanto: Deus age por pura e imotivada exuberância; Sua completude divina continuamente transborda em contínua expressão criativa, o brincar incessante e transcendental do espírito.



Frederick Nietzsche, o filósofo que trouxe à cristandade a nova de que “Deus está morto”, certa vez ressalvou: “Eu acreditaria em um Deus que pudesse dançar”. Tendo isto em conta, seu ateísmo deve ser a compreensível reação a alguma ranzinza imagem teutônica de divindade – modelada, talvez, a partir de algum sisudo patriarca burguês cuja solenidade excluía a dança. Caso Nietzsche houvesse conhecido o Srimad-Bhagavatam, ele teria poupado a si mesmo e a outros de grande mágoa, haja vista que suas páginas descrevem extraordinariamente a dança transcendental de Deus, o mais belo e gracioso de todos os dançarinos.



Por que Deus deveria ser limitado de alguma maneira? Trata-se de encoberta inveja de Deus proibir-Lhe o que nós mesmos possuímos e desfrutamos. Ele é o nosso superior categórico e nos excede em todas as esferas: este é o próprio significado de Deus. Nós, por conseguinte, devemos compreender que tudo o que vemos aqui – todas as atividades, todos os relacionamentos, todos os desfrutes – tem sua perfeição consumada em Deus.



Deus, afinal, é a Verdade Absoluta, a única e exclusiva fonte de tudo. Tudo o que existe é, por assim dizer, clonado a partir dEle. O nosso mundo transitório é um reflexo turvo e deslustrado de Seu mundo eterno; a nossa sociedade, de Sua sociedade; os nossos relacionamentos, de Seus relacionamentos. Nós mesmos, sendo feitos à imagem divina, somos pequenos exemplares dEle. Consequentemente, estudando-nos e estudando o nosso mundo, podemos entender algo sobre Deus e sobre o Seu mundo. Vemos, por exemplo, que as pessoas possuem a disposição de lutar. Podemos compreender, por conseguinte, que a essa disposição existe em Deus. Similarmente, vemos em nosso mundo a atração sexual entre aqueles do sexo masculino e aqueles do sexo feminino. Tal atração, pois, também tem de residir em Deus. Deus é completo, e, longe de ser menos pessoa do que somos, é vastamente mais completamente pessoal.



Desta maneira, Ele luta e faz amor, e a razão pela qual os especuladores querem negar-Lhe essas atividades é pensarem que o Seu lutar e o Seu amar seriam maculados pelo ódio e pela luxúria que acompanham os nossos. Isto é um equívoco. As atividades de Deus, como o Seu nome e a Sua forma, não são materiais, senão que são completamente espirituais. Conquanto possa haver uma semelhança familiar entre a forma e as atividades de Deus e as nossas, devemos estar atentos para não Lhe atribuirmos os defeitos e debilidades das nossas; há uma diferença qualitativa.



Devemos compreender essa diferença de modo inteligente. Consideremos o atributo variedade. Como vimos, o Srimad-Bhagavatam revela esmagadora variedade na divindade. Deus exibe, por exemplo, uma infinitude de formas. Mas a unidade absoluta não é um atributo do espírito? Deus não é um? Isto é verdade, mas a unidade que apenas exclui ou nega a diversidade é material, unidade mundana. Podemos ver que semelhante unidade seria indigna de Deus, dado que a mesma O privaria de algo de valor. (E há variedade aqui; se não de Deus, de onde ela vem?). Logo, a unidade de Deus tem de ser transcendente: ela deve incluir – não excluir – a variedade. Tampouco Sua variedade é granjeada a custo da unidade. Este é o poder da transcendência: conciliar o um e os muitos em uma síntese superior. Embora essa unidade espiritual escape da compreensão da inteligência mundana, cabe bem dentro do âmbito do poder inescrutável de Deus.



O princípio da transcendental diversidade-na-unidade também nos ajuda a compreender a natureza espiritual do corpo de Deus. Conquanto Deus advenha em uma forma similar à nossa, essa forma é eterna e espiritual – não diferente, na verdade, do próprio Deus. Para Deus, não há divisão – como há para nós – de alma e corpo. E a forma de Deus é tão transcendentalmente unificada que cada e todo órgão possui em si mesmo as funções de todos os outros. Embora Krsna possa ter membros, cada membro é uma pessoa completa. (E, como Sua forma é espiritual, ela permanece eternamente no auge da juventude).



O mesmo princípio explica por que Deus pode aparecer em tantas formas diversas e, ainda assim, permanecer um e absoluto. O devoto puro, pela percepção espiritual, pode entender isto completamente, e Ele aprecia a insondável profundidade do atributo de Deus de ser pessoal mediante a multifacetada expressão desse atributo. As várias personalidades do Supremo único são manifestas no contexto de diferentes relacionamentos. Vemos o mesmo fenômeno em funcionamento na personalidade humana. Um homem mostrará diferentes facetas de sua personalidade em diferentes contextos: como, digamos, um juiz em trajes negros no tribunal, como um esposo relaxando sozinho com sua esposa, como um pai brincando com seus filhos, como um filho em visita aos seus pais, como um professor instruindo seus alunos, como um amigo fazendo palhaçada com seus companheiros e assim por diante.



Assim, é característico a pessoas exibirem muitas facetas, e quanto mais “bem integrada” é a pessoa, maior é a variedade de papéis e relacionamentos que ela pode manter sem perda de integridade. O mesmo princípio aplica-se, portanto, à Pessoa Suprema, mas, em Seu caso, tanto a integridade pessoal quanto a variedade de relações são levadas, como estabelecido, ao extremo.



Deus estabelece relações pessoais com ilimitadas almas, todas as quais são criadas e mantidas por Ele para esse próprio fim. A fim de facilitar essas relações, Ele Se expande em diferentes formas, mostrando-Se a Seus devotos puros de vários modos em resposta às maneiras com que eles aproximam-se dEle. Todas essas formas transcendentais são eternamente manifestas na morada espiritual de Deus. E, de tempos em tempos, uma ou outra dessas formas advém a fim mostrar-Se na escuridão do mundo material, iluminando o caminho de volta ao lar.



O veredicto do Srimad-Bhagavatam é que, de todos os adventos de Deus, Krsna é o mais elevado. Suta Gosvami, após concluir seu levantamento das encarnações, declara: ete camsa-kalah pumsah krsnas tu bhagavan svayam: “Todas as encarnações acima mencionadas são ou porções plenárias ou porções das porções plenárias do Senhor, mas o Senhor Sri Krsna é a Personalidade de Deus original”.



Por esta razão, o seguimento central do Srimad-Bhagavatam é uma extensa narração do advento do Senhor Krsna à Terra. Todo o Décimo Canto é devotado a isso, e o Srimad-Bhagavatam se constrói recontando muitos outros adventos divinos, levando-nos, deste modo, cada vez mais a fundo na compreensão acerca de Deus, e, assim, preparando-nos para a revelação última da divindade.



Essa revelação última é transmitida nos passatempos infantis e juvenis de Krsna na vila pastoril de Vrndavana. O que seria um paradoxo para olhos mundanos é claro para a visão purificada: que, aqui neste pequeno vilarejo, havia advindo à Terra não apenas Deus em Sua mais elevada manifestação, mas também toda a inteireza de Sua mais elevada morada. O Senhor, afinal, é inseparável de Seus devotos e de Sua morada, e, quando Krsna advém, todos advêm com Ele. Separado disto, não há Krsna manifesto, e, a fim de revelar-Se, Krsna tem, necessariamente, que revelar Seus devotos íntimos, Suas relações com eles, e os lugares de Suas atividades juntos.



A nossa idéia referente ao Senhor Supremo é, de maneira geral, condicionada a noções de poder e força e majestade – Ele é o que está assentado sobre o círculo da terra, cujos moradores são para ele como gafanhotos; é ele o que estende os céus como cortina, e os desenrola como tenda – o que é correto. Todas as escrituras, por fim, convidam-nos a reconhecermos a nossa subordinação a Ele. Quando, porém, nós o fizemos completamente, tornamo-nos elegíveis a receber a revelação de Deus de uma faceta outra e mais sublime dEle próprio, na qual Ele demonstra, desimpedidamente, um sedutor encanto de sentimentos. Tal é a Suprema Personalidade de Deus, Krsna, que, em Vrndavana, entra em relações íntimas de amor de forma a desenvolver inauditas intensidades de sentimento. A apetência do Senhor Supremo por amor é infinita: Ele Se chama Rasaraja, o mestre dos sentimentos de amor. Nessas trocas confidenciais de amor, alguns devotos amam-nO com emoções parentais, e o Senhor reciproca brincando como um menininho encantador e traquinas; outros devotos adoram-nO com sentimento fraternal, e o Senhor diverte-Se com eles, garoto entre garotos, como seu amigo do coração e parceiro espirituoso; ainda outros adoram Krsna com o fervente ardor do amor conjugal, e, em resposta, Ele atrai semelhante devotos e os galanteia como seu encantador pretendente e parte seus corações.



Reconhecemos esses sentimentos no mundo material, é claro, mas, em Vrndavana, residem as emoções originais e verdadeiramente espirituais, como manifestas no reino transcendental de Deus por meio das trocas de amor nos corpos espirituais. Relacionamentos e emoções materiais não podem nos ajudar a compreender esses sentimentos transcendentais. Visto os amores materiais serem vacilantes e evanescentes, eles são contaminados pela hesitação e pela dúvida, e transpassados por medo e receio. Eles são perniciosos, e o tempo e as mudanças os roubam todos. O amor direcionado a Krsna jamais morre; Sua beleza sempre nova e Sua eterna reciprocação fomentam esse amor incessantemente; sua intensidade cresce sem limites. Todos esses imortais sentimentos de Vrndavana, cada um com sua própria mistura de humores, são variedades de êxtase. São superemoções, as quais, por comparação, tornam os nossos mais estimados sentimentos terrestres franzinos, secos e insípidos.



Krsna significa “todo-atrativo”, e, em cumprimento ao significado de Seu nome, Ele revela-Se para incitar-nos a reviver a nossa relação perdida com Ele e para entrarmos com Ele nesses eternos passatempos de amor. Desta maneira, Ele mostra-nos o que significa inteiramente amar a Deus de todo o nosso coração, alma e mente. A maior parte de nós, não obstante, não pode perceber e experienciar diretamente a qualidade espiritual desses passatempos e sentimentos transcendentais. Eles são revelados, eles são disponibilizados, mas nós não os assimilamos como eles são. Podemos estar contemplando o espírito, mas vemos apenas matéria.



Neste ponto, faz-se necessário tocar em um ponto delicado. Deus Se revela a nós como nos rendemos a Ele. Rendermo-nos a Deus significa retirar o nosso interesse e o nosso desejo de tudo o que não é Deus. Completa rendição significa ter Deus, e somente Deus, como o nosso fim e o nosso meio. Devemos devotar-Lhe todo o nosso coração, alma e mente. Tal pureza é necessária.



Deus, é claro, também permite a rendição parcial, com a esperança de gradual avanço. Em toda tradição religiosa, há desfrute material escrituralmente sancionado – leiamos desfrute como envolvimento com coisas que não Deus. Uma vez que esse materialismo é restrito e regulado, ele é, nesse aspecto, bom. Em última instância, todavia, ele também deve ser abandonado: “Abandona toda religião materialmente motivada e rende-te a Mim”. Resistir a essa solicitação com base no fato de que o nosso materialismo é escrituralmente sancionado é tornar o bom o inimigo do melhor. Simplesmente retardamos o nosso progresso no caminho espiritual e permanecemos mais ou menos distantes da Personalidade de Deus.



Essa pureza de coração necessária para ver Deus talvez pareça distante do nosso alcance, mas não é o caso. Krsna revelou verdadeiramente a Si mesmo: A mesma escritura que transmite essa revelação ao mundo – o Srimad-Bhagavatam – transmite, ao mesmo tempo, o processo para purificarmo-nos a fim de podermos receber a revelação de Krsna. Esse processo é a prática do serviço devocional centrado na audição da narração pura dos gloriosos passatempos de Deus. Em outras palavras, o próprio Srimad-Bhagavatam, quando falado por alguém que é puro, purifica-nos – “Ele purifica o desejo por desfrute material no coração do devoto” (1.3.17) – de forma que nós possamos pessoalmente perceber Krsna como Ele é. Embora Krsna tenha advindo cinco mil anos atrás, Ele permanece completamente acessível a nós no Srimad-Bhagavatam. A única coisa pela qual a revelação aguarda somos nós.





Tradução de Bhagavan dasa (DvS)

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