segunda-feira, 21 de maio de 2012

Ensaio sobre o Bhagavad-gita: “Não Lutarei”


“Não Lutarei”

 


 

Por Vishaka Devi Dasi


Há cinco mil anos atrás, no campo de batalha de Kurukshetra, no norte da Índia, enormes falanges de tropas armadas estavam prestes a iníciar uma guerra. De um lado, os poderosos irmãos Kaurava, determinados a defender o trono que haviam usurpado de seus piedosos primos, os cinco Pandavas; do outro lado, os Pandavas, empenhados em recuperar sua herança.

Arjuna e os demais irmãos Pandavas tinham enfrentado graves tribulações após a morte prematura de seu pai, Pandu. Os invejosos Kauravas queimaram suas casas, os envenenaram, desonraram sua esposa e os condenaram a quatorze anos de exílio. Exibindo uma tolerância e humildade digna dos santos, os Pandavas ao final pediram apenas cinco aldeias para governar. Apesar de todo o reino ser legalmente deles, para evitar mais desavenças, os Pandavas fizeram apenas esta proposta modesta. Os Kauravas, porém, recusaram, declarando que "não dariam sequer um pedaço de terra onde pudesse ser espetada uma agulha." Assim, a guerra tornou-se inevitável.

Os Pandavas e os Kauravas conclamaram todos os reis do mundo como aliados para a grande batalha. Eles também aproximaram-se do Senhor Krishna, a Suprema Personalidade de Deus. Os Kauravas obtiveram do Senhor Krishna um grande exército, mas Arjuna escolheu ficar com o próprio Senhor. Embora Krishna se recusasse a empunhar armas na batalha, ele concordou em ser o quadrigário de Arjuna. A supremacia do Senhor não é diminuída pelo fato dEle executar tal tarefa servil. Ao invés disso, devido à devoção imaculada de Arjuna, o Senhor desejava tornar-se subserviente a ele, em reciprocidade amorosa. Os devotos saboreiam o pensamento de que Krishna, o Senhor e criador do universo, permaneça de pé na carruagem com as rédeas dos cavalos em Suas mãos, pronto para obedecer ao comando de Seu devoto, Arjuna.

No início da batalha, ambas as partes sopraram seus búzios, enchendo o céu com suas vibrações e enchendo de terror os fracos de coração. Arjuna, sentado em sua bela quadriga, pegou o seu arco e se preparou para atirar suas flechas contra os Kauravas. De repente, de forma inesperada, Arjuna ficou ansioso. Ele pediu a Krishna que conduzisse sua carruagem a um local entre os dois exércitos, para que ele pudesse ver quem lutaria em aliança com os Kauravas. Ao obter uma visão clara, ele ficou pasmo. No meio do exército inimigo, ele viu seu sogro, amigos de seu pai, seu avô, amigos de seu avô, professores, tios maternos, irmãos, filhos, netos, amigos e simpatizantes.

Imagine-se na posição de Arjuna. Se um parente ou amigo lhe maltrata, você naturalmente hesita em retaliar. Por amor, você tolera e perdoa tal comportamento. Mas Arjuna tinha o dever de ajudar a derrotar um exército que incluía amigos e parentes. Isso era demais para ele; devido ao afeto por eles, Arjuna ficou dominado pela tristeza. Seus membros tremiam, sua boca secou e seu arco escorregou de sua mão. Embora não fosse um covarde, mas sim um grande lutador, devido à compaixão, ele não desejava matar sua família, amigos e superiores.

Imediatamente ele disse a Krishna que queria deixar o campo de batalha, pois unicamente o mal poderia resultar do fato de ele matar seus semelhantes. Ele não desejava qualquer vitória, felicidade, ou reino, pois combater em tal guerra medonha seria pecaminoso. Se tantos homens nobres fossem mortos, certamente suas esposas e filhas ficariam desprotegidas, a imoralidade predominaria e isso prejudicaria a venerável descendência de tais famílias.

Além de possuir incomparável talento e competência militares, Arjuna era devoto fervoroso e amigo íntimo do Senhor Krishna, a Pessoa Suprema. Portanto, ele possuía qualidades divinas: ele tinha sentidos controlados, estava desapegado do falso prestígio associado à fama e seguidores, era generoso e estava sempre consciente dos princípios morais. Sentado em sua quadriga entre os enormes exércitos, Arjuna decidiu que seria melhor permitir que os Kauravas o matassem, sem reação ou resistência. Dessa forma, ele estava preparado para abdicar de sua posição real e de sua pretensão ao trono, passando a viver de esmolas.

Mesmo com tais ideias drásticas, Arjuna não conseguia aliviar a pressão que o dilema lhe causava. Ondas turbulentas surgiram em sua mente, pois apesar de sua determinação em desertar, toda a sua vida fora dedicada a defender a probidade. Nesta batalha, a causa dos Pandavas era sem dúvida justa. Além disso, Arjuna era um líder nato, dotado de heroísmo, poder e determinação, qualidades necessárias para defender a justiça. Sua linhagem primou por aumentar ainda mais essas qualidades, e ele tinha aprendido a nunca desistir do trabalho que decorre de sua própria natureza.

Arjuna estava dividido entre sua dedicação ao dever sagrado e o amor por seus parentes e amigos. Totalmente perplexo e incapacitado por sentimentos conflitantes, Arjuna rendeu-se a Krishna, dizendo: "Agora estou confuso sobre o meu dever e perdi toda a compostura por causa da fraqueza. Nesta condição, eu Lhe peço que diga claramente o que é melhor para mim. Agora eu sou seu discípulo e uma alma rendida a você. Por favor, instrua-me". No entanto, no momento seguinte ele tomou uma segunda decisão: "Não lutarei". E nada mais disse.

O Senhor Krishna sorriu, não para zombar de Arjuna em seu sofrimento, mas como um pai que sorri ao ouvir o sonho ruim de seu filho. Assim como o pai vê claramente que o sonho do seu filho é simplesmente uma ilusão e que sua consequente angústia é desprovida de significado, o Senhor Krishna viu que Arjuna não estava situado no mundo real, mas em um mundo de sonhos equivocados que lhe trouxeram sofrimento. O Senhor imediatamente passou a acordar Arjuna de seu estupor, explicando a ele a essência e a finalidade da vida. Os ensinamentos de Krishna no campo de batalha naquele dia constituem o Bhagavad-gita, uma das mais antigas e mais lidas escrituras do mundo.

O Senhor Krishna não mediu palavras. Ele primeiramente disse a Arjuna que ele estava sendo um tolo, porque no mais alto sentido – o sentido espiritual –, ninguém morreria na batalha. Na verdade, ninguém morre em qualquer lugar ou momento, porque a alma, a minúscula partícula espiritual que empresta a vida a um corpo que, de outra forma, estaria morto, jamais morre. A alma é imortal e imutável; o corpo, mutável e mortal.

O corpo é um agregado de elementos animados pela alma, assim como um boneco, animado pela mão do marionetista, se mexe, canta, dança, ri e chora. Quando ao final o marionetista deixa o boneco de lado, alguém sensato se lamenta? Da mesma forma, quando a alma ao final deixa o corpo, nenhuma pessoa com conhecimento espiritual deveria lamentar-se.

Certamente que isso não é um encorajamento à matança desnecessária. Os Vedas proíbem a matança indiscriminada de qualquer ser, incluindo animais. Matar é abominável e punível pelas leis do estado e pelas leis de Deus. Mas, assim como o estado autoriza a sua polícia a usar a força, Krishna, a suprema autoridade, encorajou Arjuna a lutar.

Krishna apresentou outro argumento a Arjuna: mesmo que Arjuna não acreditasse na existência da alma, ele ainda não tinha nenhum motivo para se lamentar. Se a vida nasce com o corpo e morre com ele, ou seja, se a vida é uma reação química (não obstante sua complexidade), então por que chorar pelos elementos químicos que param de reagir? Arjuna era descendente de uma civilização baseada na sabedoria espiritual, e certamente acreditava na existência da alma.

Krishna explicou: "Arjuna, você está pensando que não será capaz de desfrutar a vitória, a felicidade, ou o reino que poderá ganhar a partir desta luta, mas tais coisas não são para seu desfrute. Você tem o direito de executar seu dever prescrito, mas não tem direito aos frutos da ação. Execute o seu dever e abandone todo o apego ao sucesso ou ao fracasso." Arjuna estava preocupado com as reações pecaminosas nas quais incorreria por lutar, mas o Senhor Krishna assegurou-lhe: "Se você lutar por questão de dever, sem considerar felicidade ou angústia, perda ou ganho, vitória ou derrota, você jamais incorrerá em pecado".

Krishna também disse que é impossível permanecer inativo. "Todos são obrigados a agir de acordo com sua própria natureza. Ninguém pode deixar de fazer algo, nem sequer por um momento". Renunciar a seus deveres e caprichosamente assumir as atividades de outro também não é viável: "É melhor exercer sua própria ocupação, ainda que de forma deficiente, do que executar o dever de outro perfeitamente”. A suposta renúncia de Arjuna em relação a lutar na guerra era uma demonstração de seu apego: uma vez que o resultado da atividade seria doloroso para ele, ele decidiu não agir. Mas a renúncia implica em desapegar-se dos frutos do trabalho, trabalhando de forma adequada, desistindo do desejo de gratificação dos sentidos e tolerando as situações desagradáveis que surgem durante execução do dever.

Assim como a não-violência ou quaisquer outras atividades piedosas não iriam aliviar o sofrimento nem resolver problema de Arjuna, o mesmo ocorre com suas especulações sobre o que fazer e não fazer. O Senhor Krishna pede-lhe, então, para abandonar tal ilusão: "Para saber a verdade, você deve aproximar-se de um mestre espiritual, inquiri-lo submissamente, servi-lo e receber dele o conhecimento transcendental. Então você aprenderá que todos os seres vivos são parte de Mim e que eles estão em Mim e são Meus".

Uma vez que Arjuna é uma alma espiritual completamente diferente de seu corpo, seu desejo deveria focar somente no benefício da alma. Como obter esse benefício? Cumprindo seu dever, não para a sua satisfação egoísta, mas para a satisfação de Krishna, a Pessoa Suprema. Uma pessoa totalmente situada no conhecimento transcendental e desapegada em relação aos resultados de seu esforço não está trabalhando materialmente, mas espiritualmente. "Portanto, ó Arjuna," Krishna diz, "entregando todas as suas ações a mim, com a mente situada em Mim, sem desejo de ganho e livre de egoísmo e letargia, lute".

Para Arjuna, lutar para o seu autoengrandecimento seria pecaminoso; tornar-se inativo ou renunciar ao seu dever seria ao mesmo tempo pecaminoso e pouco prático; no entanto, lutar porque Krishna assim o queria, era o caminho da libertação e da felicidade.

Mas por que Krishna quis esta luta? Por que o próprio Deus defendeu o emprego da força? Porque, para manter a sociedade, às vezes é necessário empregar a força. O Senhor Krishna promete que, quando e onde haja o declínio da religião e predominância da irreligião, ele protegerá os piedosos, aniquilará os ímpios e restabelecerá os princípios religiosos. O Senhor tinha reunido todos os ímpios em Kurukshetra; Ele queria livrar o mundo de todos eles nesta enorme batalha. Embora Arjuna estivesse pronto para perdoar as ofensas perpetradas contra ele por seus primos, Krishna não tolerava tais injustiças a Seus devotos. Portanto, Ele insistiu: "Lute". Ao final do Bhagavad-gita, Arjuna concordou.

Mesmo que os adversários de Arjuna fossem ofensores, ao morrerem em Kurukshetra eles adquiriram suas formas originais no mundo espiritual, pois morreram vendo e pensando na bela Personalidade de Deus, Sri Krishna, dirigindo a quadriga de seu amigo, guiando-o na batalha e protegendo-o do perigo. Assim como alguém que vive pensando em Krishna torna sua vida perfeita, da mesma forma, alguém que morre pensando em Krishna também a torna perfeita. Todos, tanto Arjuna, que sobreviveu à batalha, como os Kauravas, que perderam suas vidas, tornaram-se perfeitos, pois ambos conectaram-se ao Senhor Krishna, a bondosa Pessoa Suprema, que sempre age em benefício de todos.

Tradução Mahavira Das (HDG)
Revisão Sadhu Sanga Das (DVS)

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